Blog do Leo Ferretti
quarta-feira, agosto 11, 2004
  O Holocausto das alfacinhas
As pobrezinhas são plantadas em grupinhos em pequenas covas
espremidas. O solo é propositalmente preparado para que elas possam
crescer rapidamente e o ambiente é geralmente climatizado. Tudo se
parece com uma incubadeira confortável onde seres bem vindos e
amados deverão nascer e ser felizes.
Em poucos dias os primeiros filhotinhos despontam e são cuidados
para que cresçam e cresçam. Para isso são regadas diriamente e se
alimentam da atmosfera e dos nutrientes químicos que são
propositalmente introduidos em suas dietas para que
fiquem "gordinhas" e "tenras".
Mais alguns dias e as covinhas já estão todas verdejantes com
moitinhas felizes e cheias de alfacinhas-crianças sorrindo e
brincando na brisa. Tudo parece ir bem até que... O mesmo humano que
cuidava tão carinhosamente delas e as regava, dia após dia, agora
começa a mostrar sua face perversa.
Sorrateiramente o humano entra no viveiro e começa a arrancar as
alfacinhas-crianças de suas covinhas. Nenhuma delas entende o que
está acontecendo, mas percebem logo que as mais fraquinhas, aquelas
que precisariam de mais amor e cuidados e aquelas que aparentemente
não são tão "gordinhas", são simplesmente arrancadas e jogadas sobre
a terra para morrerem agonizando de fome, sêde e calor. Pior que
isso, as alfacinhas sobreviventes descobrem que parte daquilo lhe
deram para comer até agora era nada mais nada menos do que restos
dos cadáveres de suas irmazinhas assassinadas anteriormente e que,
depois dessa morte lenta e agonizante, são esfaceladas e misturadas
à terra onde outras alfacinhas nascerão depois.
Mas o martírio das alfacinhas sobreviventes desse "replante" (esse é
o nome técnico para o genocídio das criancinhas-alfaces) está apenas
começando...
Sem nenhuma explicação elas são separadas de suas irmãozinhas de
cova e enfileiradas sobre um canteiro, como bois indo para o
matadouro. Alí, presas ao solo, dependentes da vontade do humano,
entregam a sua sorte ao destino e recebem mais regas diárias, são
bombardeadas com cocô de animais e coisas podres e lhes servem junto
os restos mortais de suas próprias irmazinhas assassinadas
no "replante" para que comam e cresçam gordinhas. Como elas não
podem se mover e não lhes adiantaria poder gritarem, resta-lhes
apenas comerem suas irmazinhas e esperarem o que futuro lhes reserva.
Mais algumas semanas e elas terão crescido e atingido a
adolescência. Estarão vistosas à custa de tanta química, tanta água,
tanta luz e tanta dor. Algumas pensarão que logo será o dia da
reprodução, quando se levantarão pendões floridos (conforme conta a
lenda propagada pelos vegetais mais velhos) e seus pólens bailarão
com o vento, fertilizando-as para que cumpram o destino dos seres
vivos: reproduzirem-se.
Mas qual nada, de repente chega um automóvel na horta e desce um
humano magro e, com olhar fixo no canteiro, aponta para uma
alfacinha. O outro humano, aquele que parece "cuidar" da horta, lhe
sorri, apanha um saco plástico e vai até o canteiro. Caminha
tranquilo e aparentemente sem nenhuma emoção. Chegando ao pezinho de
alface sonhadora, ele começa por lhe arrancar sem nenhuma piedade as
folhas menos bonitas ou mais ressecadas. Faz isso criteriosamente,
de forma primitiva e rude e, aparentemente, sem nenhuma piedade.
Depois, olhando o pezinho de alface já dilacerado, ele sorri
satisfeito e o agarra firmemente na base. Em um segundo suas frágeis
raízes são partidas como se fossem muitos bracinhos e perninhas
sendo arrancados do corpo. Agora o pezinho de alface já sente que
vai morrer...
Ainda sofrendo muito ele é levado até um tanque com água suja e lá é
mergulhado e "lavado". Então é posto ainda úmido dentro do saco
plástico abafado e é entregue ao outro humano. A umidade dentro do
saco plástico, apesar do calor e da falta de oxigênio e gás
carbônico, manterá a pobre alfacinha viva, ainda que agonizante, por
muitas horas ainda. Mas o martírio só começou...
Enquanto as outras alfacinhas assistem impotentes sua irmãzinha
sendo levada embora, e vêem suas folhas arrancadas e jogadas à
terra, onde serão misturadas e seus restos mortais servirão
novamente para engordar outras alfacinhas, aquela que agoniza no
saco não imagina o que lhe espera. Mas as que restam no canteiro já
sabem agora que não terão futuro, que não poderão se reproduzir, que
seus sonhos ser-lhe-ão arrancadas e que seu destino será,
aparentemente, acabarem também agonizando dentro de um saco
plástico. Doce ilusão...
Em pouco tempo a alfacinha que agoniza no saco plástico se verá
dentro de um lugar escuro e frio (que ela não sabe que se chama
geladeira), mas saberá que é muito diferente do seu canteirinho
iluminado e agradável. Lá talvez ela passe horas refletindo sobre o
objetivo de sua vida, as consequências de seus atos, seus sonhos não
realizados... Suas saudades das irmazinhas). Mais um pouco e, quando
ela já esperava por uma morte lenta, solitária e fria, será retirada
da geladeira e levará outro banho de água fria na pia da cozinha.
Vozes animadas serão ouvidas na cozinha enquanto a alfacinha que
ainda não entende nada começará a ser despedaçada. Suas folhinhas
feridas receberão então um doloroso banho de ácido e sal e, enquanto
sua dor parece insuportável, bocas enormes se abrirão diante dela e
aqueles mesmos dentes brancos que pareciam antes sorrirem felizes,
virão agora em sua direção e a estraçalharão sem nenhuma piedade.
Assim, enfim a alfacinha saberá que seu destino não é ter destino
algum, mas somente atender a gula furiosa de outros seres impiedosos
que além de as verem apenas como "comida", ainda se dão as defrute
de comê-las enquanto agonizam depois de uma horrível sessão de
tortura mediaval.
Que o deus das alfaces cuide bem de suas almas...
Abraços,
Prof. JC
 
Para a minha filha: Beatriz.

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